Para a italiana Susanna Marchionni, o déficit habitacional torna o setor destino fundamental de recursos
Quando a empresária italiana Susanna Marchionni e seu sócio, Gianni Savio, pensaram em tornar acessíveis as smart cities (cidades inteligentes) no mundo, o Brasil foi o destino escolhido para receber um primeiro projeto-piloto. Mais especificamente, o Ceará. Foi assim que surgiu a Planet Smart City, que completa 11 anos em 2024.
Hoje também na Índia, nos Estados Unidos e na própria Itália, Marchionni conta que o Brasil foi escolhido em primeiro lugar por estar entre os países com maior déficit habitacional no mundo e por ter capacidade de atrair investimentos no setor. A empresária pondera que, independentemente do lado dos governantes, o país acaba sempre investindo em infraestrutura e habitações, por necessidade.
“Se chegar alguém que fale: ‘a partir do próximo ano, eu não vou investir em infraestrutura, nem fazer casas’, isso vai destruir o país. O Brasil não tem escolha, porque precisa”, diz.
Ainda assim, não é fácil para uma estrangeira, acostumada com os padrões de inflação e juros europeus, viver os terremotos na economia brasileira. Ela conta que é difícil ainda entender esses ciclos, mas está mais habituada e consegue encontrar em ferramentas externas as soluções para a continuidade de sua empresa.
Para Marchionni, o modelo de negócios da Planet hoje se encaixa em um novo comportamento dos consumidores de imóveis. Segundo ela, os jovens preferem cada vez mais morar em habitações menores para priorizar o acesso a serviços e facilidades. Confira os principais trechos da entrevista.
Como surgiu a ideia da Planet Smart City? Por que vocês escolheram o Brasil como primeira opção para o projeto?
A ideia desse projeto foi do meu sócio. Gianni Savio começou a pensar: “Por que se fala de smart cities no mundo e ninguém pensa em fazer algo grande que seja realmente ao alcance de todos?”. Os primeiros projetos eram pequenos e dedicados a um público riquíssimo. Pense na Masdar City, nos Emirados Árabes: um apartamento era vendido por US$ 10 mil dólares (R$ 55 mil) o metro quadrado.
E Gianni começou a pensar que, para ter escala dentro do que queríamos, era preciso de muito déficit habitacional. E naquele período saiu uma reportagem na revista britânica The Economist que falava dos dez maiores lugares do mundo onde investir. E um era o Porto do Pecém, no Ceará. Eu nem sabia onde era o Ceará. Nunca tinha pisado no Brasil. Então, eu me mudei para lá e foi feita uma análise junto com a Universidade de Milão sobre o desenvolvimento da região. Aí buscamos uma área e lançamos o projeto-piloto. E eu me apaixonei pelo Brasil.
A ideia desde o início era lançar esses projetos não só pensando na tecnologia, mas em utilizá-la como um meio e não como um fim para mudar a vida das pessoas. Então, tem também o planejamento urbano, da mesma forma que pensamos no meio ambiente e no conceito da inclusão social.
Então, é no processo de construção que vocês fazem o trabalho de atrair também o comércio e a indústria?
A gente faz uma construção desde o começo que se chama “hub de inovação”. São mais de mil metros quadrados com uma parte de espaços compartilhados para os moradores. Portanto, tem biblioteca, locais de empréstimo de objetos e ferramentas, tem espaços de coworking , cozinhas compartilhadas. E as pessoas podem usar tudo gratuitamente.
Nesse “hub de inovação” a gente também deixa áreas para lojas, que alugamos. Mas nos primeiros meses é gratuito, para ter o comércio assim que o projeto fica pronto. Seria um problema o morador chegar e não ter comércio. Ou o lojista chegar e não ter moradores. Portanto, tentamos alimentar esse ecossistema.
E isso faz parte de um programa mais amplo, ligado ao nosso conceito de soluções “smart” [inteligentes].
No centro de competência temos esse time que pensa quais são as melhores soluções que podem ser integradas, pilar por pilar. São quatro pilares: meio ambiente, arquitetura, tecnologia e a parte social, que eu considero aquela que mais impacta a vida de todos. E quem cuida é o nosso time de “community manager” [gerente de comunidade], que interage com os moradores para tentar criar boas práticas.
Esse seria o pós-venda, então?
Nosso trabalho sempre continua depois da venda. Se você quiser fazer um andar a mais na sua casa, o community manager te ajuda a apresentar o projeto na prefeitura para não fazer sem alvará. Ele organiza cursos, festas, eventos, workshops e até a criação da associação de moradores. E isso é gratuito.
O mercado imobiliário aposta na venda de imóveis totalmente decorados, prontos para entrar e morar já na entrega das chaves. Na foto, aparta Danilo Verpa/Folhapress
E como vocês financiam isso? Como se torna algo rentável?
A gente tem, como carro-chefe, um aplicativo gratuito, o Planet App, que é o painel de controle do bairro, ou do condomínio no caso de projetos verticais. Por ele dá para organizar festas e eventos, o aplicativo mostra todos os livros disponíveis na biblioteca, e dá para reservar o livro. Ou se quiser uma furadeira amanhã, ela vai ver no aplicativo.
Mas como tudo isso é gratuito? Dentro do aplicativo as empresas podem vender produtos e serviços e a Planet recebe uma comissão de quem vende. E quanto mais ganho comissões, mais posso oferecer serviços legais.
Vocês estão aqui no Brasil há 11 anos, já passaram por alguns ciclos econômicos. E se tem um setor que sofre com ciclos econômicos é o imobiliário. Como lidam com isso?
É rir para não chorar… Quando eu falo qual é a taxa de juros mensal do Brasil, o italiano acha que é anual. Na Itália a gente chegou a ter juros de 2% por ano. Aqui isso é mensal. No período em que o IGP-M [Índice Geral de Preços – Mercado] chegou àqueles valores absurdos, a gente colocou um teto de juros. Porque, afinal, os nossos compradores de lotes eram impactados de uma forma tão grande que chegaram a ser inadimplentes de forma exagerada.
Então a gente tomou a decisão de bloquear os juros. E essa decisão reduziu um pouco nosso lucro, lógico. Mas nós, europeus, temos uma constituição um pouco diferente comparada ao brasileiro. Para nós, às vezes, é mais importante aumentar o capital de giro e reduzir um pouco a lucratividade.
Este é um dos momentos mais desafiadores que vocês estão vivendo como empresa aqui no Brasil?
É uma coisa que, para o europeu, é difícil de entender. É um movimento tipo terremoto. Nós não estamos acostumados, nem financeiramente nem psicologicamente. No começo, eu sofri. Olha, quando eu cheguei aqui o euro era R$ 3, agora está pulando para R$ 6.
Logo no início, quando vocês chegaram, o Brasil viveu uma grande crise econômica também, entre 2015 e 2016.
Aquela crise foi pior. Foi muito forte. Ela foi tão grande que passou de uma crise econômico-financeira para uma crise social. Quando você passa um limite de números e de prazo, vira crise social. E quando vira social, é muito mais demorada para sair. Quando impacta no social, as pessoas param de acreditar. Reduzem totalmente os investimentos, o consumo, tudo de uma forma tão forte que a retomada é muito lenta. Desta vez, não percebi o impacto da mesma forma.
Como você enxerga hoje o ambiente político e econômico no Brasil e como isso impacta o seu setor?
O país, para um construtor, tem uma vantagem: seja um governo de direita ou de esquerda, o Brasil precisa de infraestrutura e de habitações, devido a esse imenso déficit habitacional. Portanto, se você faz uma análise dos últimos anos, dos últimos 20 anos, ninguém penalizou o setor. Todos precisam dele.
Se chegar alguém que fale: “a partir do próximo ano, eu não vou investir em infraestrutura, nem fazer casas”, isso vai destruir o país. O Brasil não tem escolha, porque precisa. Portanto, imagino que para os próximos 20 anos isso não vai mudar. Independentemente de um lado ou do outro [da ideologia do governo].
Pensando em comportamento do consumidor, o que você repara de tendência aqui no Brasil?
Tem uma coisa que é fortíssima no Brasil, mas eu estou percebendo também nos outros países onde a gente opera: as pessoas tendem a morar em habitações —casa ou apartamento— um pouco menores, porque todos querem serviços compartilhados.
Não é só aqui no Brasil. Na Índia é igual, nos Estados Unidos… Você morava em 70 m², aí pensa: “Será que posso comprar uma coisa mais bem localizada de 50 m² e a máquina de lavar ficar lá embaixo? A furadeira, não preciso ter um armário para todas aquelas ferramentas, posso alugar. Quero fazer um jantar com 20 pessoas? Vou lá na cozinha compartilhada, que é muito bem organizada”.
Em cada lugar do mundo estamos percebendo que, quanto mais serviços compartilhados você oferece, mais as pessoas querem.
Na sua visão, isso tem a ver com uma mudança de comportamento das pessoas, que estão priorizando mais serviços, mais facilidades e menos bens?
Com certeza. O jovem mora em um apartamento menor, então, tem menos coisas. Mas tem mais acesso a experiências diferentes. Acho que isso é cultural desta última geração. Inevitavelmente as pessoas depois repassam para os pais. É uma visão diferente, é ligada a gastar menos, é ligada ao meio ambiente. Por esse motivo, é uma coisa que impactou também as faixas de renda mais altas.
Fonte: Folha de São Paulo– Por Stéfanie Rigamonti – São Paulo, 26/07/2024