Bancos que atuam no crédito imobiliário esperam que as concessões de recursos se mantenham, em 2024, próximas dos patamares recordes dos três anos anteriores. Apesar disso, as instituições financeiras enfrentam o desafio de se tornar menos dependentes da poupança, que é a principal fonte de recursos do setor e vem sofrendo saques, para conseguir sustentar o crescimento do segmento à frente.
Uma estratégia que tem sido adotada é direcionar a captação de recursos por meio de instrumentos de mercado de capitais para o financiamento a obras de incorporadoras, no chamado plano empresário, e priorizar o “funding” da poupança para as operações de pessoa física. Em 2023, o volume de recursos do SBPE (financiamento com recursos da caderneta) direcionados para a construção alcançou R$ 40 bilhões, conforme a Abecip, a associação das instituições financeiras que atuam no crédito imobiliário.
“Temos buscado alternativas de funding para ao setor”, diz o responsável pela área de negócios imobiliários para pessoa jurídica do Santander, Robson Bhering. “O mercado de capitais pode substituir parte desses R$ 40 bilhões e não tem limitação de funding”, acrescenta.
O chefe da divisão imobiliária da gestora Tivio Capital, Adriano Mantesso, afirma que, apesar dos juros ainda elevados, o mercado de capitais tem suprido a demanda das incorporadoras por financiamento. “Em São Paulo, o mercado de lançamentos não parou de crescer e tem um momento aquecido apesar da baixa da poupança”, diz. “Por mais que os juros estejam altos, vale a pena [fazer a captação no mercado] porque as vendas estão indo a todo vapor. Encareceu o funding, mas ainda faz sentido para o incorporador porque é melhor do que usar o próprio capital.”
Para o sócio e gestor de crédito imobiliário da RBR, Guilherme Antunes, “é sabido que vai faltar poupança”. Segundo ele, o mercado de capitais, por meio de fundos imobiliários e certificados de recebíveis imobiliários (CRI), tem sido uma das principais alternativas em crédito para incorporadoras, enquanto os bancos têm destinado a poupança para pessoa física. “Esse arranjo deve alimentar o crédito por um bom período, sem ter uma crise”, afirma.
Dados Abecip mostram que, de janeiro a maio, as novas concessões de empréstimos para aquisição da casa própria dentro do SBPE cresceram 2,6% frente ao mesmo período do ano passado. Os bancos que fazem parte desse arranjo disponibilizaram R$ 65,2 bilhões em novas operações, volume próximo aos R$ 69,7 bilhões vistos nos primeiros cinco meses de 2022, que foi o segundo melhor ano da história.
Talvez esse volume pudesse ter sido muito maior se a poupança não estivesse sob pressão. O saldo da caderneta no SBPE, ou seja, o estoque do volume direcionado obrigatoriamente para o crédito imobiliário, caiu de R$ 801 bilhões em 2020 para R$ 749 bilhões em maio deste ano, segundo a Abecip. Houve, portanto, uma redução de R$ 52 bilhões nos últimos três anos e meio.
O sistema já acumula três anos consecutivos de saques líquidos. Em 2021, houve saída de R$ 35 bilhões do SBPE. No ano seguinte, mais R$ 81 bilhões. Em 2023, os resgates líquidos alcançaram R$ 72 bilhões, segundo a entidade. O cenário até melhorou em 2024. Segundo dados do Banco Central, a poupança registrou, em junho, entrada líquida de R$ 12,8 bilhões, mas isso não impediu que o primeiro semestre deste ano fechasse com saída líquida de R$ 2,8 bilhões.
No fim do ano passado, dado mais recente disponível, a poupança representava 34% do funding imobiliário. O FGTS, destinado à habitação popular, tinha 26%. O restante vinha do mercado de capitais e fundos imobiliários.
“Nos últimos semestres, observamos uma redução no volume de poupança direcionada para os financiamentos imobiliários, com saldo sempre menor que a carteira imobiliária do mercado”, afirma o diretor de crédito imobiliário do BradescoCotação de Bradesco, Romero Albuquerque. “O problema atual da poupança, de saques superiores aos depósitos, é estrutural e não conjuntural”, ressalta.
Os investidores estão migrando para produtos com maior rentabilidade, como fundos, CDBs e títulos isentos, por exemplo, disponíveis nas plataformas digitais e aplicativos das instituições financeiras. Com isso, a fatia da poupança no total de funding do setor está em queda. Segundo Albuquerque, os bancos já incorporaram um modelo de “funding híbrido, com poupança no repagamentos dos contratos, e outros instrumentos de mercado, notadamente as LCIs [letra de crédito imobiliário] e LIG [letra imobiliária garantida]”.
O diretor de negócios imobiliários do Santander e presidente da Abecip, Sandro Gamba, afirma que “o mercado tem muita clareza de que o funding imobiliário está deixando de ser dependente da poupança”. Na visão do executivo, o mercado “precisa se reinventar” para suprir o encolhimento da tradicional fonte de recursos subsidiados.
Até mesmo o líder do crédito imobiliário no Brasil tem vocalizado as preocupações com a queda do funding direcionado da poupança. Em entrevista ao Valor no início de julho, a vice-presidente de habitação da Caixa, Inês Magalhães, afirmou que essa questão é “um desafio estrutural de todo o sistema financeiro”. Em junho, o presidente do banco público, Carlos Vieira, já havia chamado a atenção para o que definiu como “sangria” de recursos da caderneta para opções mais rentáveis de investimento, incluindo contas remuneradas de instituições financeiras digitais.
Ainda que o cenário macroeconômico reúna incertezas, a taxa básica se mantenha elevada e os recursos da poupança estejam em queda, o mercado vai permanecer aquecido nos próximos anos devido à demanda resiliente. Mantesso, da Tivio, afirma que o setor deve manter o patamar recorde dos últimos anos em termos de produção de crédito imobiliário. “O ciclo do desenvolvimento imobiliário é relativamente longo, então hoje estamos colhendo o planejamento feito durante a pandemia”, diz.
Para o gestor, “há um pipeline [operações em preparação] grande de projetos” que começam a ser entregues. Esse movimento impulsiona o crédito porque, quando a incorporadora entrega a obra, há um repasse do financiamento das unidades para os bancos.
Antunes, da RBR, também enxerga o volume de entregas como um dos fatores de sustentação da produção de crédito imobiliário pelos bancos. “Os projetos lançados entre 2020 e 2022 estão sendo entregues a partir de agora. Tem grandes volumes de entrega de empreendimentos que foram bem vendidos e a carteira será repassada para os bancos. Com isso, o mercado deve se manter no nível atual nos próximos dois a três anos.”
Fonte: Valor Econômico – Por Sérgio Tauhata – 23/07/2024